A quantidade de alimentos perdidos no mundo chegou a 931 milhões de toneladas no ano de 2019, segundo dados do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e pela WRAP, organização britânica de resíduos.
Desse volume, 61% são desperdiçados por famílias, 26% pelos serviços de alimentação (escolas, hotéis, restaurantes) e 13% pelo varejo (supermercados e semelhantes). Apesar de o desperdício se concentrar em etapas seguintes à produção, a indústria tem grande importância na mudança desse cenário.
Consumidores se mostram dispostos a mudar seu comportamento, mas esperam também que as empresas envolvidas ao longo de toda a cadeia façam sua parte, pois entendem que a redução do desperdício alimentar é dever de todos que compõe o ecossistema.
A Fi South America promoveu, nesta quinta-feira (29), um Q&A com especialistas para discutir o tema. Participaram do debate Donir Ribeiro da Costa, engineering director da Nestlé, Julia Coutinho, CEO da Regularium, e Vicente Ramos, redator publicitário da HQ Content.
No centro do debate esteve a escassez alimentar, agravada pela pandemia, e os efeitos do desperdício sobre esse cenário. Diante do aumento da urgência em melhor distribuir os alimentos, tornou-se fundamental mudar, a toque de caixa, o sistema alimentar para algo mais sustentável e equitativo.
E, dentro deste cenário, o termo Food Waste começou a ganhar espaço e fazer parte do dia a dia de toda a cadeia, do produtor ao consumidor final.
Basicamente, o termo Food Waste faz referência ao desperdício ocorrido na etapa final da cadeia alimentar. Nesta lista são incluídos os alimentos com prazo de validade expirado, descarte dos itens desperdiçados e alimentos que não estão em conformidade com a legislação.
Julia Coutinho, da Regularium, afirma que no Brasil o Congresso Nacional avançou no debate sobre o tema ao criar, em 2020, Lei 14.016, que garante que “estabelecimentos dedicados à produção e ao fornecimento de alimentos, incluídos alimentos in natura, produtos industrializados e refeições prontas para o consumo” ficassem “autorizados a doar os excedentes não comercializados e ainda próprios para o consumo humano”, contanto que atendessem alguns critérios como prazo de validade não expirado e integridade garantida.
“A correta destinação do desperdício merecia uma regulamentação mais objetiva e essa Lei começa a tratar deste assunto de uma forma muito mais clara”, diz a CEO da Regularium.
Ela alerta que, apesar dos avanços, ainda há muita coisa a melhorar, principalmente no âmbito da indústria para que essas possibilidades abertas para reduzir desperdício possam ser colocadas em prática.
Desperdício entre a produção e o varejo
Dados da Agência da Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO) apontam que uma parte considerável do desperdício ocorre entre a produção e o varejo, o que evidencia a necessidade de as empresas envolvidas nessas etapas, terem a consciência de que tornar suas etapas mais eficientes não é só uma questão de aumentar a lucratividade, mas contribuir dentro de um contexto social bem mais amplo.
Como uma das maiores empresas do mundo no setor alimentar atuando tanto na produção quanto no varejo a Nestlé diz que coloca o tema desperdício em constante discussão. “Nós, como empresa de alimentos, temos que respeitar a sociedade e os produtores de matéria prima, sempre tendo em vista reduzir todo tipo de desperdício”, afirma Donir Ribeiro da Costa, diretor da empresa.
Costa acrescenta: “Todas as ações da Nestlé são realizadas para respeitar o alimento e as pessoas. Alimentamos muita gente e não podemos perder nada. É com essa ótica que buscamos melhora de forma constante”.
Ainda sobre este cenário, Vicente Ramos, da HQ Content, que trabalha o impacto das marcas sobre o consumidor, explicou que a indústria pode servir de exemplo para toda a sociedade. “Quando a indústria mostra preocupação, ela naturalmente estimula o consumidor a mudar seus hábitos quanto ao desperdício de alimentos”.
Nestlé corta resíduos pela metade
Como uma das maiores empresas de alimentos do mundo, a Nestlé tem grande participação sobre esse cenário, não só por conta do desperdício que uma empresa do seu tamanho pode gerar, mas também na condução de uma nova cultura a respeito dos alimentos.
Desde 2008, a empresa cortou pela metade a quantidade de resíduos gerados e descartados por suas fábricas.
Para reduzir ao máximo o desperdício, Donir da Costa explicou no Q&A alguns pontos de suma importância que são realizadas nas fábricas da Nestlé. O primeiro deles é o controle total de todos seus processos, da entrada da matéria-prima à entrega do produto final.
A empresa também diz fazer robusto investimento em treinamento de colaboradores durante a operação. “Qualificamos nossos colaboradores para que eles tenham todas as ferramentas para tomar suas próprias decisões na linha de fabricação. Isso reduz muito o desperdício”, explicou Costa.
Além disso, a empresa afirma que faz uso de equipamentos adequados para evitar falhas e desperdícios e tem programas de melhoria contínua do alinhamento com fornecedores para que entreguem a matéria prima na qualidade esperada para iniciar a produção.
Outro tema que já faz parte do dia a dia das fábricas da Nestlé é a transformação digital tendo em vista a redução do desperdício nas linhas de produção. “Temos ciência que quanto mais inteligência nossas linhas de produção tiverem, mais eficiente será a operação e menor o desperdício”, indicou o diretor.
Para isso a Nestlé investiu em um processo de gestão de mudança muito bem feito. “Todos devem entender da transformação digital que a empresa vem passando. Ou aceleramos e promovemos a mudança ou seremos atropelados”, salientou.
Doação de alimentos
Para Julia Coutinho, a doação de alimentos é uma das soluções para o combate ao desperdício, mas há uma insegurança sanitária e jurídica que envolve o tema. E mesmo com a nova lei, a doação ainda não foi regulamentada para que seja colocada em prática.
Julia explicou que a Lei 14.016 não tem um enfoque na questão sanitária, sem regras específicas dentro do tema. Por isso, a Anvisa entrou nessa discussão com um AIR (avaliação de impacto regulatório) para buscar aprimorar o que está apresentado na lei.
Como resultado, surgiram algumas opções para atuação da Anvisa. A primeira delas é a publicação de uma resolução complementar. Ou a agência pode, por meio de guias e manuais de orientação (sem características normativas), contribuir com a complementação da lei.
“Com base nesta avaliação de impacto regulatório, foi definido que a Anvisa tem, sim, sua participação na interface de regras para aproveitamento do desperdício e doação, mas isso não seria por meio de resolução complementar e, sim, por meio de guias e informativos”, complementou Julia.
No entanto, a questão da utilização de alimentos doados ainda é motivo de muita discussão. “A expectativa é que o guia da Anvisa traga muitos esclarecimentos e definições que ajudem no entendimento do tema”, complementa Julia.
Comunicação
Os especialistas apontam que, além da regulamentação da legislação sobre desperdício, é preciso melhorar também a comunicação entre diferentes etapas da cadeia produtiva.
Neste contexto, Vicente Ramos acredita que a comunicação eficiente entre os players é fundamental para reduzir o desperdício e aumentar a eficiência do setor de alimentos. “A conscientização do consumidor só aumentará quando a indústria demonstrar essa preocupação também”, diz.
Ramos também acredita que, ao demonstrar preocupação com o desperdício, a indústria mostrará ao consumidor que a responsabilidade é de todos. “O consumidor entenderá que a responsabilidade não é apenas dele, é uma jornada na qual todos têm sua importância, com um ecossistema todo se beneficiando”, conclui o publicitário.
O vídeo deste Q&A FiSA e das edições anteriores, e seus respectivos White Papers (um estudo completo sobre o assunto), estão disponíveis no FiSA BrainBOX, um espaço exclusivo para profissionais que atuam em P&D, Marketing e Regulatório. Acesse aqui e conheça todas as vantagens de fazer parte desta comunidade.
Este e outros temas relevantes para a indústria alimentícia estão no Q&A FiSA. O próximo tema é "A nova agenda da Anvisa e atualizações: o que está por vir?" e você pode participar da conversa com especialistas no dia 28 de novembro. Inscreva-se gratuitamente na Jornada Fi South America e tenha acesso à Plataforma FiSA Xperience.
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