O conceito de qualidade da carne e de seus derivados envolve vários aspectos inter-relacionados e dependentes de todas as etapas da cadeia produtiva desde a seleção genética, o nascimento do animal, até o abate, preparo e consumo do produto final. Por esta razão, pode-se dizer que o conceito de qualidade da carne é amplo, complexo e ainda depende da finalidade de uso e ponto de vista de avaliação, ou seja, de consumidores, de produtores ou de processadores.
De modo geral, a qualidade da carne pode ser definida como um conjunto de propriedades que identificam o que apreciamos na carne quando a compramos, comemos ou a selecionamos para uso como matéria-prima para elaboração de produtos cárneos. Tais conceitos devem acompanhar o dinamismo da sociedade atual, em constante transformação. Deste modo, pressupõe-se que as definições de qualidade da carne também sofrem mudanças com o decorrer do tempo e de acordo com os diversos contextos.
Tradicionalmente, as propriedades utilizadas para definição de qualidade da carne são aquelas associadas à nossa percepção sensorial, como aparência, cor, sabor, textura (com destaque para a maciez), suculência, gordura aparente, capacidade de retenção de água e odor, também comumente chamados de parâmetros intrínsecos. Outro fator de qualidade imprescindível seria o frescor da carne ou a qualidade sanitária, ou seja, livre de patógenos, parasitas, toxinas, agentes físicos ou químicos de contaminação e ser proveniente de animais saudáveis.
Parâmetros extrínsecos são outros parâmetros que têm ganhado destaque para os consumidores na atualidade e são assim denominados porque não podem ser detectados imediatamente por exame físico ou sensorial da carne, mas normalmente estão associados à maneira como a carne é produzida. Tais fatores estão diretamente relacionados ao bem-estar animal, à produção sustentável e aos valores nutricionais da carne e os impactos na dieta das pessoas.
Há ainda de se considerar outros parâmetros importantes tais como preço e oferta/disponibilidade da carne. Cada atributo de qualidade pode apresentar maior significância dependendo da cultura, costume local e renda per capita. Contudo, de modo geral, os atributos de qualidade da carne podem ser visualizados de forma muito semelhante ao “triângulo das necessidades” de Maslow (Maslow, 1943) demonstrado na Fig. 1. Quando cada nível de necessidade é satisfeito, o próximo nível assume maior prioridade, e assim, sucessivamente.
Fig 1. Percepções dos consumidores sobre a qualidade da carne representadas como um “triângulo de necessidades”. (Adaptado de Purslow, 2017).
Nesta primeira parte desta série de artigos vamos inicialmente discutir de forma mais detalhada os parâmetros extrínsecos de qualidade relacionados ao bem-estar animal e à produção sustentável da carne, já que estas são questões recentes que têm despertado grande interesse dos consumidores, embora não sejam os primeiros fatores do triângulo de necessidades apresentado na Fig. 1.
Bem-estar animal e qualidade da carne
Existe uma preocupação crescente dos consumidores em relação à forma como a carne é produzida, especialmente em relação ao bem-estar animal e à produção orgânica. No Brasil, o controle de normas e padrões utilizados para se garantir o bem-estar animal e um abate humanitário são preconizados pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Abate humanitário pode ser definido como um conjunto de procedimentos técnicos e científicos que garantam o bem-estar dos animais desde o embarque na propriedade rural até a operação de sangria no abatedouro frigorífico.
A preocupação com o bem-estar animal envolve questões éticas e econômicas, já que um procedimento de manejo pré-abate apropriado irá garantir que os animais não sofram e não sejam tratados com crueldade, além de prevenir que ocorram anomalias na carne ou hematomas que possam depreciar sua qualidade. A realização de um manejo inadequado dos animais que serão destinados ao abate também terá grande influência no peso final desses animais, causando prejuízos de grande importância econômica, em razão de a qualidade estar diretamente ligada ao valor final do produto.
O manejo pré-abate envolve uma série de situações não familiares para os animais, que causam estresse aos mesmos, dentre elas: agrupamentos, confinamento nos currais das fazendas, embarque, transporte, confinamento e manejo nos currais dos frigoríficos, sendo que são consideradas as etapas mais críticas as de embarque e desembarque dos animais. Tais atividades devem ser bem planejadas e conduzidas para minimizar o estresse, que pode causar danos à carcaça e prejuízos na qualidade da carne.
Situações de estresse decorrentes de um manejo pré-abate inadequado também podem dar origem a anomalias no produto final, conhecidas pelas siglas em inglês PSE (pale, soft, exsudative) e DFD (dark, firm, dry), que respectivamente correspondem a carnes com aspecto pálido, flácido e exsudativo ou escuro, firme e com a superfície ressecada. Ambos os defeitos ou anomalias surgem quando os animais são submetidos ao estresse e estão relacionados com as transformações bioquímicas que o músculo sofre para se transformar em carne.
Além das questões já mencionadas que podem ter impacto direto na qualidade da carne e na rentabilidade econômica, a indústria cárnea dá importância considerável ao bem-estar animal para transmitir aos consumidores confiança de que estão adquirindo produtos oriundos de sistemas de produção éticos. Cada vez mais, varejistas e outros grandes compradores de carne estão exigindo transparência e uma auditoria minuciosa das instalações de produção e processamento, a fim de garantir que os produtos estejam em conformidade com normas legais e que cumpram o mínimo necessário das demandas relacionadas ao bem-estar dos animais exigidas pelos clientes.
Neste contexto tem aumentado muito o uso de diversos programas de garantia do bem-estar animal pelas indústrias de carnes. Como o bem-estar só pode ser mensurado após a avaliação de muitos parâmetros de qualidade, sua medição é complexa. Mais recentemente, estão sendo desenvolvidas abordagens de avaliação de risco para o bem-estar animal com fundamentos científicos que estão sendo incorporados nestes programas.
Sustentabilidade e consumo da carne
O número de informações sobre os custos ambientais da produção animal tem crescido significativamente. A produção de carnes é uma prática agrícola tradicional, porém relatórios de organizações internacionais como a FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) têm demonstrado que esta produção (destacadamente a bovina) resulta em danos consideráveis ao meio ambiente. Além disso, embora o crescimento da demanda por produtos de origem animal seja expressivo, a produção e o consumo de carne estarão cada vez mais vinculados ao impacto ambiental e às mudanças climáticas.
Desta forma, é possível observar em vários estudos da área que a produção de carnes contribui significativamente para as mudanças climáticas e também mudanças relacionadas ao uso da terra. É geralmente aceito que os alimentos de origem animal produzem níveis mais altos de gases de efeito estufa do que alimentos de origem vegetal. A produção animal (incluindo transporte e ração) são responsáveis pela maior parte das emissões de gases do efeito estufa do setor agrícola. Em relação ao uso da terra, a produção de carnes requer insumos alimentares (por exemplo milho e soja para ração animal) que necessitam de grandes quantidades de terra cultivável e água, energia e insumos químicos associados (como fertilizantes e pesticidas).
Uma produção sustentável de carne pode ser definida como uma forma de produção “ecologicamente correta, economicamente viável, socialmente justa e humana” (Appleby, 2004). Tal forma de produção reúne aspectos relacionados à saúde animal, proteção ambiental, produtividade, segurança alimentar, qualidade dos alimentos e eficiência sob uma perspectiva de custo de produção de modo que os consumidores percebam o produto com um maior valor agregado. Sistemas de rastreabilidade e autenticação são componentes-chave e ferramentas úteis para sustentar com credibilidade atributos de qualidade da carne relacionados aos conceitos de sustentabilidade para os consumidores. Tais sistemas possuem como objetivo o alcance da transparência na cadeia produtiva de carnes desde a fazenda até a mesa do consumidor, fornecendo informações precisas sobre a origem, sexo, idade, raça, tratamentos veterinários, dentre outras informações relevantes.
O crescente campo do consumo sustentável está oferecendo aos consumidores mais informações sobre os impactos ambientais de suas escolhas alimentares. O aumento da oferta de alimentos cultivados organicamente, produtos produzidos localmente e a disseminação de várias recomendações para que se consuma menos carnes são sinais de que o consumidor está atento a estas tendências. Cabe a indústria de carnes acompanhar estas novas demandas com o uso da ciência e da tecnologia para que se possa produzir com qualidade e desta forma garantir sua posição nesta fatia de mercado emergente.
Considerações finais
Os conceitos mais atuais de qualidade da carne fresca ultrapassam as definições tradicionais dos parâmetros sensoriais mais facilmente mensuráveis para algo mais complexo e desafiador que a indústria de carnes precisará se adequar e voltar seus esforços. Contudo, muitas empresas já vislumbram estes novos pontos de vista e demandas e estão buscando com auxílio de alternativas inteligentes e sustentáveis superar os desafios impostos. Aspectos éticos e sustentáveis da produção e consumo de carnes estão se tornando o centro das atenções nas esferas acadêmica, política e do setor privado. Dadas as diferenças de produção e consumo em diferentes partes do mundo, o impacto disso será diferente em cada localidade, que dirá agora no momento árduo que estamos vivendo, em uma crise sanitária e econômica sem precedentes. Existe uma incerteza considerável sobre como esses fatores se desenvolverão em diferentes regiões do mundo na próxima década, mas não há dúvida de que se desenvolverão.
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