*Por Juan Aguiriano, head global de Sustentabilidade e Tecnologias do Grupo Kerry
Em junho deste ano, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, alertou para o que chamou de “catástrofe” relacionada a uma nova crise alimentar impulsionada pela pandemia e exacerbada pela guerra na Europa. Os preços dos alimentos e combustíveis estão subindo rapidamente e a inflação global está no maior patamar dos últimos 40 anos, abrangendo de ovos a sorvetes.
Esses altos preços estão tendo consequências devastadoras para comunidades ao redor do mundo, especialmente nas regiões mais pobres e para aqueles que já estão em situação de insegurança alimentar.
Para combater esse cenário de escassez, a indústria alimentar precisa se equilibrar sobre um aumento da produção e distribuição sem aumentar emissões de gases estufa, considerando os níveis de emissão que foram combinados no Acordo de Paris, que procura limitar o aquecimento global a menos de 1,5°C até 2050, quando a população global deve passar dos atuais 7,9 bilhões de pessoas para 10 bilhões.
Nesse cenário, de aumento populacional, a indústria global precisará produzir 50% a mais de alimentos e 70% a mais de proteínas de origem animal para alimentar a todos. Mas, no caminho atual, seria preciso de três a quatro planetas para atender à demanda. Vale destacar também que as práticas atuais do setor de alimentação são responsáveis por 30% das emissões totais de gases estufa (GEE), o que é inaceitável imaginando os novos parâmetros que o mundo pede para combater a crise climática.
Para aumentar a produção alimentar sem degradar o ambiente, será essencial apostar em algumas soluções, com destaque para a agricultura regenerativa, combate ao desperdício de alimentos e produção sustentável de proteína. Muito está sendo feito nesse sentido e a indústria alimentar já pode aderir a boas práticas para aumentar eficiência e sustentabilidade da sua produção.
Agricultura regenerativa
A agricultura regenerativa é um sistema de práticas que incrementa os recursos que são utilizados para a produção de alimentos em vez de esgotá-los ou destruí-los, reabilitando todo o ecossistema, levando a fazendas e economias mais produtivas e comunidades saudáveis.
A agricultura nos padrões tradicionais contempla práticas que podem danificar o solo, o que contribui para que o carbono gerado volte para a atmosfera, secando o solo, causando a desertificação de regiões antes cultiváveis. Até 2050, cerca de 1 bilhão de pessoas devem emigrar de suas regiões por conta da desertificação do solo, agravando a crise de refugiados.
A terra degradada tem um rendimento de colheita mais baixo, produz uma vegetação com qualidade de nutrientes menor, além de absorver muito menos carbono. Desde que a agricultura química se acelerou na década de 1970, o planeta perdeu um terço da sua área cultivável por conta das práticas degradantes de produção.
Um solo saudável obtido a partir de práticas agrícolas regenerativas pode reduzir o carbono no ar ao capturá-lo e colocá-lo no solo. São os microrganismos da terra que têm uma capacidade única de sequestrar gás carbônico do ar. Este processo só pode ser alcançado com uma vegetação viva e saudável, utilizando uma tecnologia que existe há milhões de anos e que a natureza oferece sem cobrar nada.
Para disseminar a nível global as práticas de agricultura regenerativa é preciso oferecer programas de educação e profissionalização voltados para esse tipo de produção. A agricultura, como núcleo do sistema alimentar, é fundamental no processo de aceleração da mudança na forma de produzir e distribuir alimentos.
A Irlanda tem servido como exemplo ao adotar um programa nacional que abarca fazendas e fabricantes de alimentos, com o credenciamento de todos os players em um banco de dados que permite o acompanhamento rigoroso da produtividade contra a emissão de GEE.
O programa, liderado pela Kerry, foi projetado para apoiar a adoção acelerada das melhores práticas sustentáveis baseadas na ciência. Ele fornece à uma rede de 3 mil agricultores irlandeses apoio educacional e financeiro para ajudá-los na transição para práticas agrícolas mais sustentáveis, que resultam em um planeta mais saudável e maior retorno financeiro para o agricultor.
Combate ao desperdício de comida
O desperdício alimentar é um problema duplo para a humanidade. Além de agravar a fome e a insegurança alimentar, é um dos grandes geradores de gases de efeito estufa. Se a produção perdida ou descartada de alimentos fosse um país, ela seria o terceiro maior gerador de GEE. A cada ano são desperdiçadas 1,3 bilhão de toneladas de alimentos, o que custa de 2 a 3% do PIB global, mais de 2 trilhões de dólares por ano em perda de produtividade.
As soluções para conter esse desperdício passam pela ampliação da vida útil dos alimentos, protegendo os produtos de contaminação microbiológica, do envelhecimento e da degradação do sabor para que ele ganhe mais tempo para chegar à mesa de quem precisa. Entre a produção e o comércio, 14% dos alimentos produzidos no mundo são perdidos todos os anos, o que significa 400 bilhões de dólares em alimentos jogados fora.
Nesse cenário, o desperdício de carne é ainda mais problemático porque a produção desse alimento é uma das mais intensivas na produção de gás carbônico, e quando o alimento não chega à mesa, esse esforço ambiental é descartado totalmente. A cada ano, mais de 73 bilhões de quilos de carne são desperdiçados. Essa quantidade seria suficiente para distribuir uma porção por dia para 2 bilhões de pessoas.
Uma das soluções está no desenvolvimento de ingredientes antimicrobianos eficazes e seguros, que vão desde aditivos convencionais a novas soluções clean label. O uso dessas tecnologias de preservação permite, por exemplo, que a carne fresca, particularmente vulnerável à contaminação e altamente perecível, ganhe mais tempo de vida, o que aumenta a chance de ela chegar ao destino final. O avanço na produção de conservantes quase quadruplicou a vida útil da carne fresca.
O desenvolvimento de ingredientes de preservação com baixo impacto ambiental poderá liberar um enorme valor nos segmentos de produção de carne e outros produtos com alto nível de desperdício, como o pão. Ingredientes de preservação convencionais e de rótulo limpo já estão disponíveis no mercado e são capazes de reduzir, agora mesmo, o desperdício de alimentos essenciais.
Além dos cuidados entre a produção e a distribuição, a indústria também pode ajudar a evitar o desperdício na parte final da cadeia, trabalhando iniciativas junto aos consumidores para que o produto deixe de ir ao lixo quando ainda está bom para consumo.
Uma das iniciativas, simples, mas eficiente, está em estimular o uso até a data de validade. Para tanto, a indústria pode trabalhar na coleta e divulgação de informações ao consumidor sobre a condição do produto para que ele entenda que as práticas de produção e distribuição são suficientemente confiáveis para manter as propriedades básicas do alimento. Muito é desperdiçado porque os consumidores acabam jogando fora algo que está com a validade próxima do fim, mas em perfeitas condições de uso.
A Kerry vem desenvolvendo soluções focadas em educar os clientes a fazer um uso mais consciente dos produtos, dando a eles informações. Para tanto, a empresa criou uma calculadora de desperdício de alimentos, em fase final de desenvolvimento, que simula o valor ganho com a extensão da vida útil do produto e o quanto pode ser reduzido em unidades de gás carbônico e litros de água com o prolongamento da vida desse alimento. E, mais importante, indica o número de pessoas a mais que podem ser alimentadas caso o alimento não seja jogado fora precipitadamente.
Proteína sustentável
A demanda e a produção global de carne cresceram nas últimas décadas, com a disponibilidade desse produto triplicando em 50 anos. No entanto, será difícil sustentar esse aumento de produtividade ao mesmo tempo em que o mundo pede por uma redução da emissão de gases de efeito estufa.
Com base nessa necessidade de aumentar a disponibilidade de proteína sem agredir o ambiente, uma solução no horizonte é melhor ao máximo a pegada ambiental da produção de proteína animal. A descarbonização da proteína animal é um imperativo para a saúde do planeta.
A Kerry, em parceria com o Programa Alimentar Mundial, lidera projetos comunitários que compartilham experiência em nutrição para melhorar a produção de laticínios sustentáveis em países em desenvolvimento. O projeto Amata, em aplicação no Burundi, um dos países mais pobres do planeta, apoia pequenos agricultores na melhora da qualidade e da produção do leite. O produto é incluído no programa de merenda escolar, proporcionando benefícios às crianças e garantindo preço justo no mercado.
Outra solução no âmbito das proteínas sustentáveis é a procura por fontes alternativas. Lançamentos recentes da indústria têm aguçado o apetite dos consumidores para proteína à base de vegetais de origem sustentável. Ainda há o desafio de converter o relutante público, muito acostumado ao consumo da proteína animal.
Nessa luta, a biotecnologia tem papel fundamental porque trabalha não só para dar paladar mais comum às proteínas vegetais como tem desenvolvido proteínas alternativas, como as carnes cultivadas, feitas a partir do desenvolvimento de células bovinas sem exigir o abate dos animais, mantendo todo o valor nutricional da carne tradicional.
Essas soluções têm potencial para nutrir populações em crescimento de forma sustentável e nunca tivemos tantas ferramentas para otimizar a produção de alimentos saudáveis, nutritivos e sustentáveis como agora.
Para explorar todas essas possibilidades, será preciso esforço conjunto da indústria, autoridades e consumidores para avançar no desenvolvimento de novas possibilidades e na aplicação delas na produção de alimentos, além de agilizar a regulamentação de inovações que têm como finalidade tirar o mundo do caminho da crise ambiental e alimentar que se apresenta no horizonte.