Na década de 90, em uma das minhas visitas à Honda no Japão como engenheiro trainee, fui questionado por meu orientador Sakamoto San sobre o meu propósito de vida, as minhas motivações, meu Ikigai (razão de viver), porque sem isso não seria possível começar minha imersão na cultura da fabricante de veículos. Confesso que demorei um pouco para entender o que significava essa palavra japonesa, já que meu aprendizado estava concentrado no kikubari(1) (fazer o básico bem feito), kaizen (cultura da mudança) e no gemba (ir onde as coisas acontecem). Entender que eu tinha que ter uma “razão de ser” clara e definida – e pior, o que é ainda mais complexo – conhecer-me bem, isso foi um choque.
Talvez por essa experiência eu não tenha achado estranho que, ao realizar um evento interno sobre Inovação com mais de 20 palestrantes de diversas multinacionais, além de representantes de Ministérios (MCTIC e MAPA) e Universidades como USP e Insper, nosso público tenha participado com tanto interesse da palestra e das atividades de uma startup que se propõe a identificar o propósito dos colaboradores. Durante os dois dias de evento, a Talent Academy não parou um minuto de atender interessados no feedback sobre a ferramenta do Ikigai preenchida online. Mais de 200 profissionais buscaram entender ou ter uma melhor compreensão do seu perfil e como seus propósitos individuais poderiam ser conectados ao da organização.
Numa visão global, hoje é possível inclusive associar as metas pessoais e empresariais com os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODs) da ONU, o que garante uma aderência global do que somos e do que pretendemos fazer. Eu, por exemplo, reconheço-me ligado diretamente aos ODs Educação de Qualidade (OD 4) e, Emprego Digno e Crescimento Econômico (OD 8). As organizações, por sua vez, no geral assumiram essa tendência há algum tempo, contemplando iniciativas de sustentabilidade em sua estratégia, que envolve diversas ODs. Algumas semanas atrás, participei de um fórum em que uma grande multinacional na área de varejo afirmou estar trocando as embalagens de plástico dos produtos que levam sua marca por outras visualmente menos atrativas, mas muito mais responsáveis para o planeta e, com um bom marketing que divulga a causa que está abraçando, tem recuperado rapidamente e até ampliado sua fatia de participação nas gôndolas.
Voltando à minha experiência na montadora japonesa, com o tempo entendi que eu não trabalhava em uma fabricante de automóveis e sim numa companhia que cuidava de vidas, que buscava incansavelmente a perfeição no que fazia para entregar o kokorokubari (surpreender, ir além do esperado) não só a seus clientes, mas para toda a comunidade. E a quase perfeição é algo que só se atinge com muita dedicação e comprometimento, diversas horas de aprendizado e aplicação, vários carros montados por nós que lideraríamos os processos, num período de plena entrega. Assim, ter um propósito bem definido e conectá-lo ao da organização foi fundamental para que eu pudesse entender meu papel na corporação, integrar-me plenamente à cultura da instituição e agregar valor naquele start-up no Brasil. Foi um período de poucas horas de sono, mas vivido com intensidade e satisfação, ainda mais quando tiramos da linha de produção o primeiro veículo.
Em relação à gestão de pessoas centrada no propósito, uma proposta é identificar as motivações individuais dos colaboradores e buscar alinhar suas expectativas com as necessidades da empresa. O trabalho de todo gestor é, no meu ponto de vista, identificar os potenciais de cada pessoa e alocá-las nas funções e desafios corretos, tanto para valorizar seus potenciais quanto maximizar as oportunidades de êxito das iniciativas e projetos corporativos. Conhecendo as aspirações e interesses dos funcionários, temos maior probabilidade de sermos assertivos nessas atribuições e, consequentemente, aumentamos as chances de sucesso.
Quantas pessoas observamos “rastejando” nas organizações não pela falta de potencial ou conhecimento técnico, mas pelo simples motivo de não enxergarem uma perspectiva para atingir os seus sonhos? E o que são propósitos que não a tentativa de materialização dos sonhos? Cabe à empresa identificar tais sonhos e buscar a concretização dos mesmos a partir das oportunidades e desafios práticos da instituição – uma vez feito isso, os resultados aparecem. Plagiando Willian McKnight da 3M: “Contrate bons funcionários e os deixe em paz”, ouso mudar para: contrate pessoas boas, com motivações alinhadas às suas e às de sua corporação, que elas te surpreenderão.
É fato que o propósito tem recebido cada vez mais a atenção das organizações e pessoas, considerando a potencialização de uma relação ganha-ganha quanto maior o matching apresentado. Assim, termino com algumas questões para reflexão: Qual é o seu ikigai, a razão pela qual você levanta da cama todos os dias? Qual o do seu departamento? E o da sua instituição? Eles caminham juntos? E a mais intrigante: Você se preocupa em conhecer e desenvolver os propósitos de seus colaboradores, alinhando-os com o do departamento e da empresa?
Observação: todas traduções do japonês são livres, realizadas pelo autor.
Agradecimento especial à Renata Betti da Talent Academy pela contribuição na elaboração do texto.
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODs) da ONU: