No judô aprendemos a usar a energia do oponente para derrubá-lo, num balé em que pernas e braços buscam uma tênue possibilidade de desequilíbrio, para gentilmente convidar o par a uma queda pela inércia de seus próprios movimentos e pela ação da gravidade.
Nas organizações, muitas vezes caminhamos no sentido contrário, implantando iniciativas que se opõem diretamente às forças e às práticas da própria empresa, criando desconfortos organizacionais que poderiam ser evitados. Felizmente para as empresas, esses movimentos perdem força com a mesma velocidade de um golpe, pois pecam pela falta de consistência, pela superficialidade e, principalmente, pela ausência de aderência aos valores e costumes existentes no ambiente que se submete a este tipo de experiência.
Como sequela o trauma pela energia mobilizada na execução dos trabalhos, percebida como desperdício pelos envolvidos e, como se isso já não bastasse, surge ainda a repulsa pelos seguidos movimentos de implantações malsucedidas. Deixando-se qualquer exagero de lado, é o que se verifica em muitas tentativas experimentadas por corporações e seus profissionais na adoção de técnicas como as dos 5 “S” ou outras do lean manufacturing. Mesmo aquelas ditas mais rebuscadas, como a gestão pelas diretrizes a partir do balanced scorecard e o Seis Sigma, para citar dois exemplos, sofrem do mesmo infortúnio.
Não é incomum escutarmos histórias sobre o efeito serrote de programas inteiros, bem como sobre o descrédito que estes assumem perante a organização, despertando a aversão dos participantes apesar dos investimentos de tempo e de dedicação dos envolvidos. São muitos os casos de empresas que, ao implantar iniciativas como essas, que envolvem necessariamente a mudança de cultura organizacional, frustram-se por anos aplicando com fidelidade a literatura disponível e as vivências que seus executores trazem de outras organizações.
Logicamente existem situações em que se fazem necessárias rupturas com mudanças abruptas, mas, mesmo nesses cenários, não se deve desprezar o conhecimento acumulado pela organização, de forma a respeitar seus valores e histórico. Nesses casos, que não devem ser rotineiros, espera-se a destreza de um samurai para cortar no momento exato e de forma definitiva os laços com o antigo, sem deixar marcas da lâmina que os segmentou.
Vale citar o exemplo de uma indústria com a qual trabalhei, que começou com uma tentativa frustrada de implantação de um programa baseado no lean manufacturing em suas diversas fábricas. Tal implantação foi inicialmente coordenada por gestores seniores de diversas áreas, que ancorados em suas experiências em outras corporações, acabaram presos a suas vivências e se esqueceram de integrá-las à cultura organizacional existente.
Três anos após o início da jornada, cada fábrica pensava e agia de forma própria. Apesar dos padrões estabelecidos, cada unidade de manufatura apresentava um nível diferente de maturidade na execução – enquanto algumas estavam imobilizadas na etapa piloto, outras espalhavam equipes em todo o chão-de-fábrica, seguindo diferentes critérios. Estávamos praticando uma verdadeira luta de rua em nosso mais importante dojô, onde fabricávamos os produtos que atendiam aos nossos clientes.
Como consequência, estando o grupo seduzido pela ideia de apostar na abordagem tradicional, acabou-se por transformar o programa em uma presa fácil da conhecida armadilha de tentar adequar a empresa ao programa. A versão que se materializou tornou a prática burocrática, gerando descontentamento e pouca aderência. Assim, agimos como falsos senseis (mestres) ao desconsiderarmos os cuidados necessários para realizarmos o sincronismo entre a teoria, as experiências dos envolvidos e a cultura organizacional vigente.
Estávamos na iminência de abortar o programa, questionando a sua validade, quando decidimos empreender um último esforço na tentativa de construir o nosso próprio caminho para a excelência – agora usando o nemawashi . “Acampamos” nas fábricas, num gemba para confirmação in loco do que estava sendo realmente praticado e para um aprendizado junto ao pessoal do chão-de-fábrica e a seus gestores. Éramos agora os aprendizes em nossa própria arte, discutíamos horas para entender o que funcionava tão bem em outras organizações, mas não na nossa, e identificávamos sinais de práticas para revivermos a essência do programa.
Constatamos diversos problemas, que começavam pelo baixo interesse e comprometimento da alta gerência das fábricas até o não entendimento do porquê do método pelo pessoal operacional, uma vez que na prática o programa não estava associado aos indicadores de desempenho (nos quais se baseava a remuneração variável de todos); e alinhado à estratégia da empresa.
Enxugamos etapas, aproximamos o jargão do método à linguagem do chão-de-fábrica, revimos os indicadores de resultados e os deslocamos para o painel de gestão à vista, obrigando os gestores a os visitarem no mínimo semanalmente. Em paralelo, os treinamentos foram intensificados, passando-se a explicar claramente aos colaboradores os porquês do programa e a delegar a estes as responsabilidades pela gestão.
Tais ações em nosso dojô de manufatura fortaleceram os laços de cumplicidade e comprometimento entre seus praticantes, além do alinhamento dos esforços para um objetivo que todos agora conseguiam visualizar, perceber e reconhecer como seus. Éramos alunos e mestres do judô corporativo, todos objetivando a prática de uma dança onde o equilíbrio de um passou a ser a sustentação do outro.
Então vieram os resultados, e nesse processo diversos colaboradores destacaram-se no ambiente operacional devido à participação ativa e, consequentemente, ao surpreendente nível de desempenho adquirido. Nossos “alunos” foram mudando de faixas (e cargos) até tornarem-se senseis em suas funções, passando a ter o compromisso de desenvolverem os novos “discípulos” num ciclo virtuoso de desenvolvimento contínuo.
Essa jornada, que parecia paradoxal por contrapor o que havia na literatura com a nossa experiência prática e a realidade organizacional, levou-nos ao rompimento com a estagnação que havia tomado conta desse assunto na empresa. Em outras palavras, estimulamos o espírito crítico e científico dos envolvidos para questionarem nossas práticas até então, sem descuidarmos do atendimento aos princípios e requisitos fundamentais teóricos e conceituais, assegurando o foco nos benefícios e objetivos do método.
O filósofo Henri Bergson escreveu que “o círculo do conhecimento é delimitado pela linha da ignorância”. Assim, como praticantes do judô organizacional, somos impelidos diariamente a interagir com outros lutadores para experimentar novos golpes (conhecimentos), ampliando a área do nosso círculo do conhecimento e, consequentemente, adquirindo consciência de que temos ainda muito a explorar e que nossas realidades podem ser transformadas para um estado melhor, sem abrirmos mão do que consolidamos até o momento. E isso vale tanto para as empresas quanto para os indivíduos!