Você já parou para pensar no impacto que o seu prato de comida tem nas florestas do mundo? Pois é, muitos dos alimentos que consumimos vêm de lugares onde as árvores são cortadas para dar lugar às plantações e a criações de animais.
A Europa é uma das maiores consumidoras de alimentos que causam o desmatamento no mundo. Segundo uma lei que tem como objetivo reduzir o impacto do mercado europeu nas derrubadas florestais, a Europa contribuiu para o consumo de um em cada três produtos agrícolas que causaram o desmatamento no mundo entre 1990 e 2008.
Percebendo isso, a União Europeia iniciou medidas para evitar que mais florestas sejam destruídas por causa do que ela consome, contribuindo para a redução do desmatamento e da degradação florestal a nível mundial.
Para tanto, a regulamentação antidesmatamento da União Europeia tem como objetivo influenciar o mercado global e não apenas as cadeias de abastecimento da própria Europa. Sendo assim, parcerias e cooperações internacionais eficientes, incluindo acordos de comércio livres, com países produtores e consumidores são fundamentais neste contexto.
Para atingir cadeias que de fato são responsáveis pelo desmatamento, a lei europeia se aplica a produtos como café, cacau, soja, óleo de palma, carne bovina, couro, madeira e derivados. De acordo com a proposta desta regulamentação, as empresas serão obrigadas a garantir que apenas produtos livres de desmatamento sejam comercializados no mercado da União Europeia.
No entanto, para o Brasil a lei se tornou uma preocupação, tratando-se do setor de carnes, pois a cadeia não possui rastreabilidade completa ou mesmo transparência sobre a movimentação dos animais. Dessa forma, não é possível demonstrar, nos moldes das exigências da lei antidesmatamento europeia, que seus produtos estão livres de desmatamento.
Todavia, enquanto o Brasil pode ter impasses para exportar por limitações diante das exigências da nova regulamentação europeia, a realidade de importar produtos agrícolas na Europa tem se tornado uma demanda cada vez mais necessária para os europeus.
Observando dados de artigo publicado na Meat Production & Consumption (in Europe) and Public Health, o número de explorações agrícolas na Europa tem registrado um declínio acentuado nas últimas décadas. Entre 2005 e 2016, havia menos de 4 milhões de explorações agrícolas na União Europeia e a grande maioria delas eram fazendas com menos de 5 hectares.
Ainda de acordo com notícias do setor, o número de explorações pecuárias com animais na Europa caiu 40% num período de 10 anos. Uma das explicações para essa baixa veio através do último censo agrícola realizado na comunidade europeia, em que foi identificado que os agricultores tradicionais da Europa estão envelhecendo e ex-agricultores, em faixas de idade mais jovens, não estão dando continuidade às atividades agrícolas. A idade média de um agricultor na UE atualmente é de 57 anos, enquanto o número de gestores agrícolas na faixa etária entre os 25 e os 44 anos está diminuindo em um ritmo cada vez mais rápido.
Mas qual o impacto da lei antidesmatamento sobre a indústria da carne no Brasil?
A indústria da carne ainda não está preparada para atender às diretrizes que a regulamentação antidesmatamento europeia exige. A rastreabilidade animal de bovinos é um dos principais impasses a se cumprir e depende de iniciativas de diversos atores da cadeia:
- Governos estaduais: com a disponibilização das guias de trânsito animal (GTA) para possibilitar o monitoramento e controle da movimentação dos animais;
- Frigoríficos: com mecanismos de transparência para maiores garantias de seu monitoramento e controle, além de auditorias independentes sobre suas operações com a divulgação dos resultados;
- Governo Federal: com atuação mais presente e sanções mais efetivas sobre fornecedores e estabelecimentos irregulares.
De acordo com o Ministério de Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), as Exportações de carne ocupam a 5ª colocação no ranking dos principais produtos exportados pelo Brasil em 2023 e os 5 produtos (soja, minério de ferro e seus concentrados, óleos brutos de Petróleo ou de minerais betuminosos crus, açúcares e melaços e carne bovina fresca, refrigerada ou congelada) brasileiros mais exportados em 2023 são responsáveis por 43% das vendas externas.
Segundo a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (APEX), a Europa é um dos mercados mais importantes para a carne bovina brasileira. Somente em 2020, os embarques de carnes para o bloco responderam por 6,24% das exportações totais em volume. Já em 2023, a carne bovina estava entre os produtos com maior participação (%) nas exportações da agropecuária no Brasil, de acordo com dados da Balança Economia do Governo Federal.
O estado de Mato Grosso, em que se localiza o maior número de propriedades habilitadas com animais para exportação de cortes para união europeia: propriedades da lista Trace Eras no Brasil (ver figura 1) e que, dentre os estados da Amazônia legal, encontra-se como o segundo colocado em maior área desmatada de acordo com dados do PRODES no período de 2015 a 2021, figura também como o segundo maior exportador de carne bovina do país de acordo com a Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (ABIEC) e deve portanto, emergencialmente atentar-se para as rigorosas exigências da nova regulamentação antidesmatamento europeia em vista de não perder este mercado.
A lista Trace Eras se trata de uma lista de fazendas aptas para fornecer para frigoríficos exportadores da União Europeia. Para se qualificar para exportação à União Europeia o produtor precisa: identificar individualmente bovinos e bubalinos, controlar a movimentação dos animais, registrar insumos utilizados na propriedade e ter vistorias periódicas das certificadoras.
As certificadoras credenciadas pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) podem auxiliar o produtor no seu cadastro junto ao Sistema de Identificação de Bovinos e Bubalinos (SISBOV) e para se manterem certificadas nesta lista as propriedades passam por vistorias periódicas realizadas pelas certificadoras, além de auditoria obrigatória com fiscal do MAPA uma vez por ano em 10% das propriedades presentes na lista TRACE ERAS.
Figura 1 – Dados de estados exportadores, segundo lista Trace Eras do MAPA, para a UE.
Apenas o estado de Mato Grosso, dentre os estados da região da Amazônia Legal, tem propriedades habilitadas para fornecer gado aos frigoríficos exportadores da União Europeia (UE). E além de Mato Grosso, somente outros 7 estados no Brasil possuem propriedades habilitadas para fornecer animais para abate para a UE (ver figura 2).
Figura 2 – Estados e quantidade de estabelecimentos (propriedades rurais de bovinos) presentes na lista TRACE ERAS habilitados para fornecer para frigoríficos exportadores para União Europeia.
Fonte: Mapa, 2022.
Com as determinações oriundas da regulamentação antidesmatamento europeia, em que os critérios de due diligence se estendem a todas as práticas das empresas fornecedoras de carne bovina da União Europeia de maneira muito mais rígida quanto aos aspectos monitoramento e controle sobre sua conduta socioambiental, é de se esperar que as empresas se adaptem com urgência em seus monitoramentos e controles sobre a origem de seus animais e transparência de informações ao mercado consumidor, do contrário podem perder o cliente europeu de suas comercializações.
O sistema de due diligence envolve fases que vão desde a coleta de informações, onde a empresa reúne informações sobre os seus produtos ao longo da cadeia de suprimentos, incluindo a geolocalização e período de produção, até a avaliação de riscos para determinar se os produtos têm alguma relação com o desmatamento, e possíveis mitigações com ações para reduzir os riscos a níveis insignificantes.
O governo do Brasil também deve evoluir em transparência, disponibilizando e desburocratizando informações que a indústria precisa para conseguir avançar em seus monitoramentos.
A lei antidesmatamento europeia entrou em vigor em junho de 2023 e prevê que empresas europeias devem fiscalizar as suas respectivas cadeias de suprimentos com o objetivo de garantir que os seus produtos não estejam relacionados ao desmatamento. As empresas exportadoras terão que comprovar que os seus produtos não vêm de áreas desmatadas após 31 de dezembro de 2020 e os países dos produtos oriundos serão classificados de acordo com os níveis de risco de desmatamento e degradação florestal do país levando também em consideração a expansão agrícola necessária para a produção destes produtos.
Todavia, embora diálogos sobre frear o desmatamento tenham acontecido nos últimos anos em muitos países que exportam commodities à Europa, ainda em aparente insegurança e resistência às exigências da nova regulamentação europeia, 16 países formalizaram uma queixa em carta à União Europeia pedindo mudanças na lei antidesmatamento e reclamando de custos para a adequação que impactaria principalmente sobre a exclusão de pequenos produtores inaptos a comprovarem o seu atendimento às exigências da referida lei.
Fato é que os números de menor produção na Europa certamente indicam oportunidades para as exportações do Brasil avançarem de modo a atender a demanda do mercado europeu. No entanto, o Brasil precisa evoluir muito na rastreabilidade total do seu rebanho bovino e na transparência de seus dados relacionados à movimentação dos animais, tanto se tratando das empresas privadas quanto dos órgãos públicos com o compartilhamento de informações essenciais para a gestão da rastreabilidade (como a Guia de Trânsito Animal – GTA - para os frigoríficos) para, portanto, atender às exigências da lei antidesmatamento europeia e permitir, deste modo, que o país se consolide com garantia de origem sobre os seus produtos no mercado europeu e entregue ao consumidor um produto seguramente livre de desmatamento.
Autores
Camila Trigueiro de Lima é Analista de Pesquisa do Radar Verde e do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). Formada em Engenharia de Alimentos pela Universidade Federal do Maranhão. Especialista em Engenharia de Segurança do Trabalho pela Arthur Thomas, possui aperfeiçoamento em Gestão pela Ohio University e Greenbelt Lean Six Sigma. Trabalhou na gestão de controle de qualidade em indústrias multinacionais de bebidas e alimentos(frigoríficos). Foi professora de nível superior nos cursos de engenharia, premiada na modalidade STEM no grupo Wyden para realização de projeto sobre smart cities em Berlim, Alemanha.
Arthur José da Silva Rocha é formado em Engenharia Cartográfica e de Agrimensura pela Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA). Atualmente é Trainee de pesquisa no Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), onde se dedica a atividades relacionadas ao geoprocessamento e sensoriamento remoto.
Ritaumaria Pereira é Coordenadora do Radar Verde, Pesquisadora Adjunta e Diretora Executiva no Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), com pós-doutorado em Ciências Ambientais no Laboratório de Uso da Terra e Meio-Ambiente do Instituto Nelson de Estudos Ambientais, da Universidade de Wisconsin-Madison. Possui graduação em Engenharia Agronômica pela Universidade Federal da Bahia (2001), mestrado em Economia Aplicada pela Universidade Federal de Viçosa (2003) e doutorado em Geografia - Michigan State University (2012). Atua na Amazônia desde 2002. Tem experiência na área de Economia, com ênfase em Economia dos Recursos Naturais, atuando principalmente nos temas da pecuária, reforma agrária e desenvolvimento econômico.
Referências
Dados de exportação do Brasil em 2023. Disponível em: https://www.fazcomex.com.br/exportacao/exportacoes-no-brasil/
Dados de exportação. Disponível em: http://comexstat.mdic.gov.br/pt/comex-vis
Exportações de carne e soja da Amazônia ligadas ao desmatamento. Disponível em: https://www.bbc.com/news/science-environment-53438680
Meat Production & Consumption (in Europe) and Public Health. Disponível em https://epha.org/wp-content/uploads/2021/10/meat-production-consumption-in-europe-and-public-health-an-exploration-final.pdf